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9 de maio de 2024 7:21 pm

A poesia marginalizada do Vale dos Esquecidos e o movimento UnPoema

Poetas e escritores do Vale do Araguaia contam como, durante os anos finais da Ditadura Militar, surgiu um dos mais criativos e efervescentes movimentos na história das artes e da cultura do interior de Mato Grosso
O poeta e escritor Antonio P. Pacheco mostra alguns exemplares dos cadernos do movimento UnPoema que eram impressos em mimeografo (Foto:Victor Oliveira)

Da Redação

Uma dos movimentos mais significativos da cultura, notadamente da literatura poética em Mato Grosso teve como cenário o telúrico do Vale do Araguaia nos coloridos anos de 1980. Um grupo de jovens idealistas e rebeldes escritores e poetas, inconformados com o isolamento, o preconceito e segregação social, o silenciamento, a perseguição e a censura à cultura em suas manifestações artísticas e intelectuais mais diversas durante o período final do Regime Militar – que na época governava sob botas de ferro o Brasil -, decidiu reagir às impossibilidades estruturais, políticas e econômicas e criaram o coletivo “União dos Poetas do Médio Araguaia – UnPoema”.

Integrantes fundadores do movimento UnPoema como Wanderley Wasconcelos, Perillo José Sabino Nunes, Paulo Antonio Filho e Antonio P. Pacheco ainda seguem escrevendo e publicando com o mesmo espírito independente e inovador do início do movimento (Foto:Telma Regina Oliveira)

A iniciativa de transformar em um movimento organizado os encontros de um pequeno grupo de artistas surgiu nas mesas do antigo “Bar e Sorveteria Patotinha”, localizado na avenida Ministro João Alberto, centro de Barra do Garças. O ano era 1984 e os primeiros articuladores do movimento foram os jornalistas, poetas e escritores Wanderley Wasconcelos e Antônio Peres Pacheco, a poeta, professora e ativista cultural Adalgisa Lima, o estudante e poeta Perillo José Sabino Nunes, o poeta e artista plástico Paulo Antônio Filho, os então bancários e estudantes universitários Sebastião Carvalho e Virgílio Cruz Assis.

“A nossa principal motivação nos primeiros encontros do grupo era trocar ideias, discutir literatura, artes em geral e claro, política”, conta Antonio Peres Pacheco. “Éramos movidos pela paixão e amor pela literatura e pelas artes. Cada um ao seu modo, acreditávamos no poder das artes, da cultura, especialmente da poesia, como instrumento de construção de uma sociedade mais culta, mais humana, justa, livre e solidária. E ainda, como  caminho para o autoconhecimento, a conscientização e politização da população. bem como um meio de sobrevivência em si mesmo enquanto atividade criativa e produtiva de bens de valor cultural”, argumenta o poeta.

O movimento UnPoema atuou como um dos núcleos da “arte marginal” dos anos 1980 no Brasil e se caracterizou pelo caráter transgressor ao sistema econômico-político social, ao academicismo e padrões mercadológicos. A independência na produção artesanal e distribuição de suas publicações estabeleceram um marco de resistência e renovação da arte literária e poética em Mato Grosso (Foto:Acervo pessoal/A.P.Pacheco)

A partir do lançamento do primeiro número do Jornal UnPoema, publicação mimeografada e encadernada em formato A4 em brochura, o movimento UnPoema cresceu rapidamente, passando a agregar no auge de suas atividades nomes como os de Carlos Ney Souza Vera, Nilmar Carvalho, Cintia Maria G. Oliveira, Selma Abdala, Wilson Ferreira Oliveira, Nadir Souza Silva, Ciro Gomes de Freitas, Soeli Fátima Kopp Militiz, Rejande José Gama (Rejande Bahia), Paulo Ramos, J.C. Mesquita, Djalma Pina, Edna Capocci, Wilson Pereira Oliveira, Ednilton Messias de Souza, Maurício Mello, Deusalina Silva, Donizete Alves Moreira, Jota Júnior, entre outros.

O poeta Paulo Antonio Filho relembra que nos anos de 1980 o Brasil vivia os estertores finais da ditadura, que ainda assim, mantinha sob forte repressão e controle a produção e difusão artístico-cultural e que isso era sentido com muito maior peso nas cidades menores, onde todos se conhecem e o aparato repressivo tem mais poder de controle por conta das relações de poder econômico, proximidade social e escassez de meios de subsistência para os artistas e produtores culturais.

A poesia dos integrantes do UnPoema carrega a marca da censura em suas metáforas, ironia, paráfrases e contraposição ao formalismo e ao status quo socio-econômico e literário (Foto:Fac-simile de páginas aleatórias dos cadernos do movimento/Acervo pessoal/A.P.Pacheco)

“Nós, jovens poetas, artistas, enfim, sentíamos na pele, no dia a dia, como cidadãos e cidadãs invisíveis aos olhos da elite e das autoridades, o peso da opressão, do preconceito que marginalizava quem fazia arte e as profundas carências de acesso aos bens, serviços e produtos culturais, tanto locais quanto dos grandes centros. Nós criávamos muito, mas, não tínhamos quem publicasse nossas produções e não tínhamos vez nos espaços formais locais, regionais ou nacionais. Sabíamos que a maioria da população também se ressentia da falta de obras literárias locais. Foi em torno desta percepção que surgiu a ideia de criarmos por nossa conta, as nossas autopublicações, abrindo espaços de voz e visibilidade no peito e na raça com intervenções inopinadas nos locais de ajuntamento de público como bares e praças”, conta Paulo Antonio Filho.

O primeiro caderno do movimento UnPoema saiu em novembro de 1984, com ilustrações feitas por Antonio P. Pacheco e edição e impressão de Wanderley Wasconcelos. “A impressão mimeografada é toda manual, bem artesanal mesmo. Foi uma escolha não apenas econômica, por ser então barata e mais acessível para nós que vivíamos da mão para a boca, mais pobres do que somos hoje. Mas, era também uma escolha ideológica e política. Nós, do UnPoema, entendíamos que fazendo assim, estávamos demonstrando que os donos do capital, das prensas, das empresas editoras, não tinham poder de parar a criatividade, a arte, a cultura, as ideias e nem subjugar o talento dos poetas, criadores de valores e belezas que não se pode precificar como um produto qualquer”, explicou Wanderley Wasconcelos.

Ao lado de Adalgisa Lima, o poeta e escritor Wanderley Wasconcelos figura como um dos pilares em torno do qual o movimento UnPoema se ergueu. Enquanto Adalgisa Lima atuava como uma espécie de caça-talentos e mentora das novas gerações de poetas e escritores, incentivando, apontando caminhos e orientando sobre perigos como o abuso do álcool e outras drogas, violência e abandono dos estudos, por exemplo; Wanderley Wasconcelos era o líder das mentes criativas em ebulição, da execução das tarefas coletivas e organizador e editor dos cadernos.

“Tanto o Wanderley quanto a Adalgisa são figuras fundamentais da UnPoema e artífices dos seus desdobramentos. Não tem como pensar a história desse movimento ou a biografia de qualquer um que passou pelos seus cadernos mimeografados, participou de suas reuniões e atividades, sem mencionar a influência e contribuição desses dois grandes poetas”, testemunha Perillo José Sabino Nunes, poeta, professor universitário e servidor público.

Para Carlos Ney Souza Vera, as publicações em brochuras do movimento UnPoema guardam um recorte histórico indispensável para se compreender o processo de constituição da poesia e da literatura produzida em Mato Grosso na atualidade, a formação de uma parte significativa do patrimônio poético do estado. “Foram poucos os números, seis ao todo, publicados em uma sequencia intensa em poucos meses, mas, que formam um conjunto de conteúdos com rara profundidade, diversidade, criatividade e sensibilidade. Ainda que a maioria dos integrantes do UnPoema fossem ainda muito jovens e imaturos, o talento da maioria salta aos olhos, a riqueza literária transborda e provoca reflexões e reverberações que transcendem o tempo cronológico da época”, argumenta. “Pena que, como há quase quatro décadas, a UnPoema ainda hoje siga lutando para romper a cegueira da segregação que faz com que o Vale do Araguaia carregue esse triste, e real, epiteto de ‘Vale dos Esquecidos’ pelo resto de Mato Grosso”, lamenta o poeta.

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