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6 de maio de 2024 7:50 pm

Carta e eleição pela democracia, ela vai chegar de fato?

Carla Jiménez

A campanha eleitoral começou a valer nesta semana com algum alento para a democracia sitiada pelo governo Bolsonaro. Faltando um mês e meio para o primeiro turno, o ex-presidente Lula mantém a dianteira com chances de liquidar a fatura em 2 de outubro, como mostraram as pesquisas da FSB/BTG e do instituto Ipec, nesta segunda. No balanço dos diferentes levantamentos, o candidato do PT tem uma vantagem de 12 a 13 pontos porcentuais sobre o capitão veterano do Exército.

Mas, no Brasil que patina sobre um terreno minado por ameaças golpistas, tudo é possível. Com a máquina pública a seu favor, o presidente Jair Bolsonaro tem na manga um Auxílio Brasil turbinado de última hora e um generoso programa bilionário de microcrédito da Caixa para entrar em campo. Vai dar tempo? Não se sabe. O cenário seguirá movediço enquanto o país não souber o tamanho da desfaçatez de Bolsonaro para desacreditar as eleições que pode vir a perder.

No momento, ele veste a surrada pele de cordeiro, prometendo cuidar do grupo que mais ignorou em seu governo: a população mais pobre. Bolsonaro sabe se camuflar de democrata quando precisa, seduzindo figuras de alta estirpe que já declararam terem sido ‘surpreendidas’ por seus desvarios.

Mas a elite mais sensata saiu da toca na semana passada. Parte dela já havia contestado os arroubos autoritários do Governo no manifesto O Brasil terá eleições e seus resultados serão respeitados, assinado em 5 de agosto do ano passado. Bolsonaro se manteve incansável em sua missão de peitar a democracia, e no dia  7 de setembro, foi às ruas com sérias simulações de um golpe. O tiro saiu pela culatra e o mandatário teve de apelar ao ex-presidente Michel Temer para escrever uma “Declaração à Nação”, apontando um suposto arrependimento. Não era, obviamente.

Quem esteve no passado dia 11 na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, em São Paulo, viu rostos emocionados e vozes embargadas durante o ato simbólico em defesa da democracia, replicado em várias outras universidades. Na corda bamba que o Brasil atravessa, foi uma faísca de lucidez. Lideranças empresariais e sindicais, movimentos populares, jovens estudantes e veteranos do Direito azeitaram um discurso generoso.

Em nome da democracia e da defesa das eleições nas urnas eletrônicas, houve discursos de repúdio ao racismo, à fome, ao autoritarismo na voz de variados interlocutores. Um consenso mínimo dos valores nacionais que importam para uma maioria no Brasil. Uma responsabilidade para quem sentar na cadeira presidencial em 2023. Não é pouco.

Na mesma São Francisco, criada num 11 de agosto de 1827 pelo imperador Dom Pedro I no Brasil de escravizados, ousou-se dar voz no salão nobre a jovens negras, como Beatriz Lourenço do Nascimento, para lembrar aos presentes que “qualquer projeto ou articulação por democracia no país exige o firme e real compromisso de enfrentamento ao racismo”. A integrante do movimento Coalizão Negra por Direitos lembrou ainda o óbvio. Não basta sermos brancos antirracistas, precisamos ser coerentes para lutar contra essa vergonha.

Na mesma faculdade de direito que conta com apenas quatro mulheres entre seu corpo de 40 professores, ouviram-se três delas lerem trechos da versão de 2022 da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, num pátio apinhado de gente. Uma era Eunice de Jesus Prudente, professora negra da USP e da faculdade Zumbi dos Palmares. Vestia seu blazer amarelo para homenagear a sua protetora, a orixá Oxum, cultuada por religiões de influência africana, como ela mesma explicou. A elegância sutil para desdizer o preconceito gestado dias antes no Palácio do Planalto por Michelle Bolsonaro.

O ato de 11 de agosto, porém, foi só um passo, um gesto, uma intenção de uma frente ampla de fato, como observou o cientista político Marcos Nobre. Não se pode morrer na praia com a carta, que ainda está em mãos de uma bolha esclarecida, com um milhão de assinaturas num país de 220 milhões. O texto em si, vale dizer, é imperfeito, embora cuidadosamente preparado. Cabem-lhe todos os elogios. Mas traz ali a frase “ditadura e tortura pertencem ao passado”, quando sabemos que o mundo cão está em milhares de cidades brasileiras, e o autoritarismo de agentes policiais determina a vida ou a morte nas periferias do país. Ignorar essa verdade é deixar o terreno sempre aberto para que essas sombras dominem o poder, como agora. Essas que, sem o menor pudor, promovem ameaças golpistas à véspera de uma eleição presidencial, apoiados por militares.

É na beira do precipício que despertamos da amnésia que tivemos depois de 1988. Vamos admitir. A democracia, até pouco tempo, estava boa para nós também, brancos da classe média e alta, com saneamento básico em dia, linhas de metrô perto de casa, escola privada e uma polícia que pede licença para nos abordar. Ela nunca existiu fora dos quadriláteros urbanos e isso nos faz falta na hora de clamar pela sua defesa nestes anos de agouro.

Nos refestelávamos na ‘polarização’ entre o PT e o PSDB nas eleições reconquistadas pós ditadura militar, sem perceber que o pêndulo do poder, na verdade, sempre esteve muito além de tucanos e petistas. A democracia brasileira foi entrecortada por crises autoritárias desde que a República foi fundada por militares, unidos à elite escravocrata. A mesma dobradinha se repete de tempos em tempos, ou não teríamos mandatos presidenciais interrompidos tantas vezes desde então.

É essa memória que nos castiga agora. Depois do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, os militares se embrenharam no Executivo, dando suporte à política autoritária de governar sob o medo. Do tuíte do General Villas Boas às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula no Supremo em 2018, à súbita desconfiança contra as urnas eletrônicas, eles continuam se provando uma força equivocada no lugar errado.

As eleições de 2022 vão testar se a articulação para fortalecer a democracia vai colocá-los no lugar outra vez e evitar novas investidas de Bolsonaro. Se as pesquisas confirmarem a vitória de Lula, o país terá uma chance de estancar a sangria da democracia. Não vai ter vida fácil. Nem para Lula, e nem para o país. A bomba relógio armada pelo bolsonarismo seguirá fustigando o Brasil e vai exigir inteligência e energia para restaurar a terra arrasada. Um dia de cada vez. Por ora, nos demos por satisfeitos se chegarmos sãos e salvos a outubro.

Carla Gimenez é jornalista

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