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3 de maio de 2024 4:22 am

Impressões sobre o livro Beco das Almas, a crônica de um Brasil interior

Paulo Antonio Filho*

Conclui minha estada no Beco das Almas, e como Luíza, também miro em silêncio a estrada que demanda para Goiás. E se me aventuro na viagem da volta, para meu mundo ficcional, neste, no qual vivo, tão ficcional quanto qualquer outro ficcional possa ser, o faço com pesar, ao deixar para trás o que sinto e percebo ser parte de mim, esse real mundo do livro Beco das Almas (Wanderley Wasconcellos, Barra do Garças, 2023, Carlini&Caniato, 191 paginas). E digo real porque poucas vezes me deparei com pessoas tão reais como essas, moradoras do Beco, com seus traumas, cruzes, vida, paixão e morte.

O que dizer depois de uma leitura como essa?

Esse lugar remoto, escondido do resto do mundo, e sua fauna recorrida de todos os sentimentos que acossam os humanos, me fez dele pertencente.

Em Beco das Almas tive um reencontro com minha infância vivida em Carecolândia, patrimoinho apertado entre um cerrado e um rio, inclusive com nomes que povoaram minha infância, pois lá tivemos também nosso Possidônio, nosso Sebastião Sapateiro. O sertão se repete em todos esses ermos.

De todas essas imagens que povoam o Beco, e minha mente, a partir de Beco das Almas, guardo vívidas figuras, que, acredite, me acompanharão para o resto de meus dias.

Imagino assim essas folclóricas imagens, rostos que me acompanham, como Parente, Noveletras, (para mim, só mesmo uma mulher notável é capaz de entender sua altivez a ponto de incomodar um canalha, e por mais de uma vez repeti que gosto de tudo aquilo que seja capaz de incomodar um canalha.) Que coisa pode ser mais original que plantar um chifre num canalha?

Outra mulher notável é Cabelo Bom, pois com ela seria capaz de me revolver entre lençóis por noites adentro, embalado pela sinfonia dos grilos. Sempre tive uma admiração especial por tudo o que é vil, perdido ou quebrado.

E mais. Fulaninho Comunista é outro incômodo com o qual me encontro, me identifico, e travo relações de boas amizades. Para mais, Belúdio, nome singular. Tereza, Barbosinha, e sem mais delongas, Antônia, “que jaz nos braços do Senhor”, frase insistida como uma ordem troada a um Deus que, não se atreva a não receber em sua glória aquela a quem amo. Sabe esse mesmo Deus quais as verdadeiras razões concorrem para a morte da consorte de um canalha.

Durante minha estadia no Beco, meu ódio constante foi direcionado a esse Coronel. Vaidoso, perverso, ignóbil, indecoroso, indigno, infame, mesquinho, odioso, pífio, torpe, sórdido, prepotente e demais adjetivos que, por obrigação devemos nomear um canalha.

Digno de nota é Teófio, corruptela sertaneja de Teófilo, oriundo do grego vulgar, Theos+Philos, onde nos entrega o teologal significado Amigo de Deus, e aí me perco nas confabulações. Um coronel que age como um deus, onipotente, através de seus caprichos, onisciente, através de seus olheiros, e onipresente, através de seu poder de mando; não seria Teófio o amigo desse deus em pagã sertanice, chafurdado em sacrifícios profanos, levando à imolação de indefensáveis culhões? Nada do que escrevemos é por acaso.

Para não alongar muito, e pretendo não ser cansativo, ainda manterei minhas lembranças acesas sobre Luíza, por quem me apeguei com intenções sodomitas. Só mesmo uma mulher em completude, liberta das amarras da tóxica e hipócrita masculinidade com a qual são concebidos os coronéis, (e os canalhas) seria capaz de extrair de dentro da carapaça hermeticamente fechada de uma natureza bestial, a natureza reaprendida para a nobreza de sentimentos, esse homem curtido na crueza, e por isso incapaz de encontrar a partir de suas dores, seu caráter, na edificação de um ser humano moldado para além do desapego. Há homens que nascem fadados a canalhice, assim como livros que são talhados para a grandeza.

O que esperar de Beco das Almas?

Uma narrativa para além da literatura, um relato crônico, a crônica de um Brasil interior, pleno de causos e rostos desconhecidos, num mundo pouco a pouco desvelado por mentes brilhantes que são capazes de ousar remover o pano de sobre esses sertões, dessa gente anônima e aldeias ignotas, a medida que universalizam o que é tão específico.

Agora mesmo, um vento morno sopra nas ruas poeirentas de Beco das Almas, nessa noite debruçada sobre o cerrado, tangendo um som de vitrola vindo do Pérola. É Juazeiro, e tem um canalha incomodado”.

*Paulo Antonio Filho é artista plástico e escritor.

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